A vida de Charles Dickens: Primeiras impressões da América
Leia um trecho de A vida de Charles Dickens, de John Forster. O primeiro volume do livro será publicado pela Senhora Bennet em fevereiro de 2025.
A vida de Charles Dickens, de John Forster. Volume 01, Capítulo 19.
Tradução de Marcela Santos Brigida
Capítulo 19 - Primeiras impressões da América
As primeiras linhas daquela carta foram escritas assim que ele avistou a terra novamente, nas margens de Newfoundland, na segunda-feira, 17 de janeiro, o décimo quarto dia desde a partida. Ainda assim, tão longe de Halifax que não podiam esperar alcançar a cidade antes da noite de quarta-feira, nem chegar a Boston antes de sábado ou domingo. Não tinham sido felizes na passagem. Durante toda a viagem, o clima esteve excepcionalmente ruim, o vento na maior parte do tempo soprando contra eles, a umidade intolerável, o mar horrivelmente agitado, os dias escuros e as noites assustadoras.
Na noite da segunda-feira anterior, houve um furacão que começou às cinco da tarde e se alastrou pela noite toda. Sua descrição da tempestade foi publicada, e as peculiaridades do comportamento de um vapor em tais circunstâncias foram capturadas como se ele tivesse sido marinheiro a vida toda. Qualquer observador menos extraordinário teria descrito um vapor em uma tempestade como descreveria um barco à vela em uma tempestade. Mas qualquer descrição deste último seria tão inaplicável ao relato do meu amigo sobre o primeiro quanto as maneiras de um jumento às de um touro enfurecido. Na carta da qual foi extraído, no entanto, havia algumas coisas dirigidas apenas a mim: “Por duas ou três horas, desistimos como se fosse uma coisa perdida, e pensando muito em você, e nas crianças, e naqueles que são mais queridos para nós, aguardamos tranquilamente o pior. Nunca esperei ver o dia novamente e me resignei a Deus o melhor que pude. Foi um grande conforto pensar nos amigos sinceros e devotados que deixamos para trás, e saber que não faltaria nada aos pequenos”.
Esta não era apenas a apreensão exagerada de um marinheiro de primeira viagem. O engenheiro-chefe, que havia trabalhado em um ou outro dos navios da Cunard desde o início das operações, nunca tinha visto uma tempestade tão severa. Ouvi o próprio capitão Hewitt dizer depois que apenas um navio a vapor, e um tão forte como aquele, poderia ter mantido o percurso e resistido. Um navio à vela teria sido carregado para qualquer lugar. Enquanto isso, em meio à fúria daquela tempestade, eles de fato cruzaram oitenta e seis quilômetros contra o vento e as ondas, direto rumo ao destino, sem desviar do percurso de forma alguma.
Ele resistiu ao enjoo apenas no dia seguinte ao da partida. Nos três dias seguintes, ficou de cama, em péssimo estado, e só no oitavo dia da viagem, seis dias antes da data de sua carta, conseguiu voltar a se sentar à mesa de jantar. O que ele então observou de seus companheiros de viagem, e o que tinha a dizer sobre a vida a bordo, foi relatado em suas Notas Americanas com humor encantador. No entanto, em sua forma inicial, recebi essas observações nesta carta, e alguns trechos engraçados, então suprimidos, poderão ser impressos agora sem problemas:
Temos 86 passageiros; e nunca foi reunida uma coleção tão estranha de criaturas no mar, desde os dias da Arca. Não fui ao salão após o primeiro dia: o barulho, o cheiro e a falta de ventilação são absolutamente intoleráveis. Só fui ao convés uma vez! — e, naquela ocasião, fiquei surpreso e decepcionado com a pequenez do panorama. O mar, correndo como corre e tem corrido, é realmente estupendo, e visto do ar ou de alguma grande altura seria grandioso, sem dúvida. No entanto, visto do convés molhado e oscilante, neste tempo e nestas circunstâncias, só impressiona de forma nauseante e dolorosa. Fiquei muito contente ao me afastar e voltar para o nível inferior.
Eu me instalei, desde o início, na cabine das senhoras — você se lembra disso? Vou descrever os outros ocupantes e nosso modo de passar o tempo.
Primeiro, os ocupantes. Kate e eu, e Anne — quando ela se levanta da cama, o que não acontece com frequência. Uma engraçada senhorinha escocesa, a Sra. P—, cujo marido é ourives em Nova York. Ele se casou com ela em Glasgow três anos atrás e fugiu no dia seguinte ao casamento; estando (o que ele não lhe contou) muito endividado. Desde então, ela passou a viver com a mãe. Agora está indo sob a proteção de um primo, para dar a ele um período de teste de um ano. Se ela não estiver confortável ao final desse período, pretende voltar para a Escócia. A Sra. B—, com cerca de 20 anos, cujo marido está a bordo com ela. Ele é um jovem inglês, domiciliado em Nova York, e sua profissão (tanto quanto pude entender) é comerciante de tecidos de lã. Eles se casaram há quinze dias. Um Sr. e uma Sra. C—, incrivelmente apaixonados um pelo outro, completam o catálogo. A Sra. C—, já decidi, é filha do dono de um pub, e o Sr. C— está fugindo com ela, o caixa, o relógio da lareira do bar, o relógio de ouro da mãe no bolso da cabeceira; e outras propriedades variadas. As mulheres são todas bonitas; extraordinariamente bonitas. Nunca vi tantos rostos bonitos juntos, em lugar algum.
O “modo de passar o tempo” deles pode ser encontrado nas Notas, praticamente como foi descrito para mim, exceto por um ponto relacionado ao jogo de cartas, que ele temia sobrecarregar a credulidade de seus leitores, mas que ele protestava ter ocorrido mais de uma vez. “A propósito da oscilação, esqueci de mencionar que, ao jogar whist, somos obrigados a colocar as cartas ganhas nos bolsos, para evitar que desapareçam completamente, e que cinco ou seis vezes em cada partida somos todos arremessados de nossos assentos, rolamos por portas diferentes, e continuamos rolando até que os comissários nos apanhem. Isso se tornou tão comum que passamos por isso com perfeita seriedade, e, quando estamos novamente apoiados em nossos sofás, retomamos nossa conversa ou jogo no ponto em que fomos interrompidos.” As notícias que os animavam a cada dia, também, e das quais apenas uma sugestão aparece nas Notas, merecem ser compartilhadas conforme escritas originalmente:
Quanto a notícias, temos mais do que você poderia imaginar. Um homem perdeu quatorze libras jogando vingt-un no salão ontem, outro ficou bêbado antes de o jantar terminar, outro ficou cego com o molho de lagosta derramado sobre ele pelo comissário de bordo, outro caiu no convés e desmaiou. O cozinheiro do navio estava bêbado ontem de manhã (depois de beber um uísque danificado pela água salgada), e o capitão ordenou que o contramestre o molhasse com a mangueira do extintor até que ele implorasse por misericórdia — o que não obteve: pois foi sentenciado a ficar de vigia, por quatro horas seguidas, durante quatro noites consecutivas, sem um casaco grosso, e a ter seu grogue suspenso. Quatro dúzias de pratos foram quebrados no jantar. Um comissário caiu da escada da cabine com um pedaço de carne e machucou o pé gravemente. Outro comissário caiu depois dele e cortou o olho. O padeiro adoeceu, assim como o confeiteiro. Um novo homem, muito doente, foi obrigado a assumir o lugar deste último oficial, e foi arrastado para fora da cama e apoiado numa pequena casa no convés, entre dois barris, e recebeu ordens para (com o capitão supervisionando) fazer e abrir massa de torta. Simplesmente olhar para isto, ele protesta, com lágrimas nos olhos, é mortal para ele, em seu estado bilioso. Doze dúzias de garrafas de cerveja preta se soltaram no convés, e as garrafas estão rolando descontroladamente, acima de nossas cabeças. Lorde Mulgrave (um homem bonito, a propósito, de se ver, e nada mais do que um bom ‘companheiro’) apostou com vinte e cinco outros homens na noite passada, cujos camarotes, como o dele, estão na proa, a qual só pode ser alcançada cruzando o convés, que ele chegaria ao camarote primeiro. Relógios foram sincronizados com o do capitão, e eles avançaram, enrolados em casacos e chapéus de tempestade. O mar estava tão agitado que passaram vinte e cinco minutos segurando-se no corrimão da caixa de roda de estibordo, encharcados até os ossos por cada onda, sem ousar seguir em frente ou voltar, com medo de serem arrastados para o mar. Notícias! Uma dúzia de assassinatos na cidade não nos interessaria nem a metade disso.
No entanto, as emoções deles ainda não haviam acabado. No final da viagem, houve um incidente mencionado de forma leve nas Notas, mas mais detalhado em uma carta datada de 21 de janeiro: “Estávamos entrando no porto de Halifax na noite de quarta-feira, com pouco vento e uma lua brilhante. Havíamos avistado o farol na entrada externa e entregado o controle do navio ao prático;[1] estávamos jogando cartas, todos de bom humor (pois o mar estava relativamente calmo há dias, com o convés seco e outros confortos incomuns), quando de repente o navio BATEU! Seguiu-se, claro, uma correria para o convés. Os homens (refiro-me à tripulação! pense nisso) estavam tirando os sapatos e jogando os casacos fora, se preparando para nadar até a costa; o prático estava fora de si; os passageiros, aterrorizados; e tudo em uma confusão e pressa insuportáveis. As ondas quebravam à frente; a terra estava a cerca de duzentos metros; e o navio era empurrado para o quebra-mar, apesar de as pás estarem sendo operadas para trás, e tudo ser feito para deter o avanço. Parece que não é costume que os vapores tenham uma âncora pronta. Ocorreu um acidente ao jogarem a nossa pela lateral e por meia hora lançamos foguetes, queimamos luzes azuis e disparamos sinais de socorro, tudo sem resposta, embora estivéssemos tão perto da costa que era possível ver os galhos das árvores balançando. Durante todo esse tempo, enquanto manobrávamos, um homem jogava a sonda de chumbo a cada dois minutos; a profundidade da água diminuía constantemente; e ninguém mantinha a calma, exceto Hewitt. Finalmente soltaram a âncora, colocaram um barco na água e o enviaram à costa com o quarto oficial, o prático e quatro homens, para tentar descobrir onde estávamos. O prático não fazia ideia, mas Hewitt indicou com o dedo uma parte específica do mapa, e estava tão confiante do local exato (mesmo sem nunca ter estado lá) como se tivesse vivido lá desde a infância. O retorno do barco, cerca de uma hora depois, provou que ele estava completamente correto. Havíamos entrado em um lugar chamado Passagem Oriental[2], em meio a um nevoeiro repentino e por causa da imprudência do prático. Batemos em um banco de lama e fomos empurrados para uma espécie de lago cercado por margens, rochas e todos os tipos de obstáculos: o único ponto seguro no lugar. Aliviados por esse relatório, e pela certeza de que a maré já havia passado do pico, fomos dormir às três da manhã, para passar a noite ali.”
O desembarque em Halifax no dia seguinte e a entrega das correspondências são esboçados nas Notas, mas não a participação pessoal dele no que se seguiu:
Então, senhor, vem um homem ofegante que já havia embarcado no navio e saído novamente, gritando meu nome enquanto corre. Eu paro, de braços dados com o pequeno médico que levei para comer ostras em terra. O homem ofegante se apresenta como o Presidente da Assembleia Legislativa, arrasta-me até sua casa e manda uma carruagem e sua esposa buscar Kate, que está com o rosto horrivelmente inchado. Depois, ele me leva até a casa do Governador (Lorde Falkland é o governador) e, então, a lugares que só Deus sabe; culminando com as duas casas do parlamento, que estavam iniciando a sessão naquele mesmo dia, com um discurso simbólico do trono feito pelo governador, tendo um dos filhos de Lorde Grey como ajudante de ordens, rodeado por uma grande quantidade de oficiais. Eu gostaria que você tivesse visto as multidões aclamando o inimitável[45] nas ruas. Gostaria que você tivesse visto juízes, oficiais de justiça, bispos e legisladores saudando o inimitável. Gostaria que você tivesse visto o inimitável sendo mostrado a uma grande poltrona ao lado do trono do Presidente, sentado sozinho no meio do plenário da Câmara dos Comuns, sendo observado por todos e ouvindo, com uma solenidade exemplar, os discursos mais esquisitos, e sorrindo, mesmo sem querer, ao pensar nesse começo das mil e uma histórias que me aguardam em casa e no Lincoln’s Inn Fields e no Jack Straw’s Castle. — Ah, Forster! quando eu voltar novamente!——
Ele retomou sua carta no hotel Tremont House[3] no sábado, 28 de janeiro, tendo chegado a Boston uma semana antes, às cinco da tarde e, como sua primeira experiência americana é apenas brevemente mencionada nas Notas, uma descrição mais detalhada pode ser bem-vinda.
Como os barcos da Cunard têm um cais próprio na alfândega, e um cais estreito, levamos muito tempo (pelo menos uma hora) para atracar. Eu estava em plena pompa sobre a caixa de rodas ao lado do capitão, olhando ao redor, quando de repente, muito antes de nos atracarmos no cais, uma dúzia de homens começou a pular a bordo, arriscando suas vidas, com grandes pacotes de jornais sob os braços, cachecóis de lã (muito desgastados) ao redor do pescoço e assim por diante. ‘Aha!’ pensei eu, ‘isso é como a nossa London Bridge’; acreditando, é claro, que esses visitantes eram entregadores de jornais. Mas o que você acha do fato de serem EDITORES? E o que você acha de eles correrem até mim violentamente e começarem a apertar minhas mãos como loucos? Oh! Se você pudesse ver como apertei os pulsos deles! E se você soubesse como eu odiei um homem de gaiters[4] muito sujos e com dentes superiores muito proeminentes, que dizia a todos que vinham atrás dele: ‘Então você foi apresentado ao nosso amigo Dickens, hein?’ Havia um entre eles, no entanto, que realmente foi útil; um Doutor S., editor do ——. Ele correu até aqui (pelo menos dois quilômetros) e reservou quartos e um jantar. E, com o tempo, Kate, eu e Lorde Mulgrave (que voltaria para seu regimento em Montreal na segunda-feira e havia concordado em ficar conosco até lá) nos sentamos em uma sala espaçosa e elegante para um jantar muito elegante, descontando as peculiaridades de como colocaram a mesa, e havíamos esquecido completamente o navio. Um sr. Alexander, a quem eu havia escrito da Inglaterra prometendo posar para um retrato, subiu a bordo assim que tocamos a terra, e nos trouxe aqui em sua carruagem. Então, após enviar um presente de flores lindíssimas, ele nos deixou a sós, e agradecemos por isso.
O que mais ele tinha a dizer sobre a experiência daquela semana encontra sua primeira manifestação pública aqui. “Como posso te contar”, ele continua, “o que aconteceu desde aquele primeiro dia? Como posso te dar a mais vaga noção da minha recepção aqui, das multidões que entram e saem o dia inteiro, das pessoas que lotam as ruas quando eu saio, dos aplausos quando fui ao teatro, das cópias de versos, cartas de congratulação, saudações de todo tipo, bailes, jantares, reuniões sem fim? Haverá um jantar público para mim aqui em Boston, na próxima terça-feira, e grande insatisfação foi causada a muitos devido ao preço alto (três libras esterlinas cada) dos ingressos. Haverá um baile na próxima segunda-feira em Nova York, e 150 nomes aparecem na lista do comitê. Haverá um jantar no mesmo local, na mesma semana, para o qual recebi um convite com todos os nomes conhecidos da América assinados nele. Mas o que posso te contar sobre qualquer uma dessas coisas que te dê a menor noção da saudação entusiástica que me dão, ou do clamor que percorre todo o país?”
Recebi delegações do Faroeste, que atravessaram mais de três mil quilômetros de distância: dos lagos, dos rios, das florestas, das casas de madeira, das cidades, fábricas, vilas e povoados. Autoridades de quase todos os Estados me escreveram. Recebi cartas das universidades, do Congresso, do Senado, e de entidades públicas e privadas de todos os tipos e formas. ‘Não é uma bobagem, nem um sentimento comum’, me escreveu o Dr. Channing ontem. ‘É todo coração. Nunca houve, e nunca haverá, um triunfo assim.’ E é uma coisa boa, não é?... encontrar aquelas fantasias que nos deram tanta satisfação ao pensá-las no centro de tudo isso? Isso acalma meu coração, e me torna um homem mais reservado, sóbrio, tranquilo, ao observar o efeito desses pensamentos em todo esse barulho e pressa, mais até do que se eu estivesse, com a caneta na mão, os escrevendo pela primeira vez. Eu sinto, nos melhores aspectos dessa recepção, algo da presença e influência daquele espírito que orienta minha vida, e que, através de uma grande tristeza, apontou para o alto com um dedo inalterado por mais de quatro anos. E se conheço meu coração, nem vinte vezes esse elogio me levaria a um ato de loucura. (...)
Restavam apenas dois dias até que o correio partisse para a Inglaterra e o final desta parte de sua carta esboçou os compromissos que o aguardavam ao deixar Boston:
Partiremos daqui no próximo sábado. Vamos para um lugar chamado Worcester, a cerca de 120 quilômetros, para a casa do governador deste lugar. Ficaremos com ele o dia todo no domingo. Na segunda-feira, seguimos de trem por cerca de 80 quilômetros até uma cidade chamada Springfield, onde serei recebido por um ‘comitê de recepção’ de Hartford, 30 quilômetros mais adiante, e levado pela multidão: de fato, não sei como, mas não ficaria surpreso se eles aparecessem com um carro triunfal. Na quarta-feira, terei um jantar público lá. Na sexta-feira, serei obrigado a me apresentar publicamente outra vez, em um lugar chamado New Haven, a cerca de 50 quilômetros mais adiante.
Na noite de sábado, espero estar em Nova York, e lá ficarei por dez dias ou duas semanas. Você deve supor que tenho muito o que fazer. Vou posar para um retrato e para um busto. Tenho a correspondência de um secretário de estado e os compromissos de um médico da moda. Tenho um secretário que levo comigo. Ele é um jovem chamado Q. Foi fortemente recomendado a mim: é muito modesto, prestativo, silencioso, disposto, e faz bem o seu trabalho. Ele se alimenta e se hospeda às minhas custas quando viajamos e seu salário é de dez dólares por mês—cerca de duas libras e cinco de nosso dinheiro inglês.
Haverá jantares e bailes em Washington, Filadélfia, Baltimore, e eu acredito que em todo lugar. No Canadá, prometi atuar no teatro com os oficiais, em benefício de uma instituição de caridade. Já estamos cansados, por vezes, além de toda expressão e concluo isso por meio de uma fraude piedosa. Fomos convidados para uma festa e escrevemos para dizer que estamos ambos desesperadamente doentes... ‘Bem,’ posso imaginar você dizendo, ‘mas e as impressões dele sobre Boston e os americanos?’—Sobre estes últimos, não direi uma palavra até ter visto mais deles e ter ido para o interior. Direi apenas, agora, que nunca fomos obrigados a jantar em uma table-d'hôte[5]; que, até agora, nossos quartos são tão nossos aqui quanto seriam no Clarendon; que, exceto por uma expressão ou outra—como ‘Snap of cold weather’; ‘tongue-y man’ para um falador; ‘Possible?’ como uma interrogação solitária; e ‘Yes?’ para ‘de fato’—eu não teria notado, até agora, diferença alguma entre as festas aqui e aquelas que deixei para trás.
As mulheres são muito bonitas, mas elas logo murcham; a educação geral não é nem rígida nem pretensiosa; a boa natureza, universal. Se você perguntar o caminho para algum lugar—para algum homem comum à beira da água, que não o conhece de forma alguma—ele se vira e vai com você. Um respeito universal é concedido às mulheres; e elas andam por todas as estações, totalmente desprotegidas... Este hotel é um pouco menor que Finsbury Square e o deixam tão infernalmente quente (uso a expressão deliberadamente) por meio de uma caldeira com canos correndo pelos corredores, que mal conseguimos suportar. Não há cortinas nas camas ou nas janelas dos quartos. Dizem que quase nunca há, em toda a América. Os quartos são, de fato, bem despidos de móveis. O nosso é quase tão amplo quanto seu quarto grande e tem um guarda-roupa de madeira pintada que não é maior (apelo a K.) do que uma caixa de relógio inglesa. Dormi neste quarto por duas noites, completamente satisfeito com a crença de que era uma banheira.
A última adição feita a esta carta, da qual muitas das páginas mais vívidas das Notas (entre elas a brilhante e pitoresca imagem das ruas de Boston) foram retiradas com pequenas alterações, é datada de 29 de janeiro:
Mal sei o que adicionar a toda esta longa e desconexa história. Dana, o autor daquele Two Years before the Mast (um livro que eu havia elogiado muito para ele, o considerando parecido com Defoe), é um camarada muito legal e em aparência, diferente do homem que você esperaria. Ele é baixo, de aparência suave, e tem um rosto marcado pelo cuidado. Seu pai é exatamente como George Cruikshank depois de uma noite de festejos, só que mais baixo. Os professores da universidade de Cambridge, Longfellow, Felton, Jared Sparks, são homens nobres. Assim como o amigo de Kenyon, Ticknor. Bancroft é um homem famoso: um coração direto, viril e sério. Ele fala muito de você, o que é um grande conforto. Do Doutor Channing eu lhe contarei mais depois que eu tomar café da manhã sozinho com ele na próxima quarta-feira... Sumner é de grande ajuda para mim... O presidente do Senado daqui presidirá meu jantar na terça-feira. Lorde Mulgrave ficou conosco até a última terça-feira (recebemos o nosso pequeno capitão para o jantar na segunda-feira) e então foi para o Canadá. Kate está bem, e Anne também, cuja vivacidade é inacreditável. Elas sentem falta de casa e eu também.
Claro que você não verá nos jornais nenhum relato verdadeiro de nossa viagem, pois eles mantêm os perigos da travessia, quando existem, em completo silêncio. Observei tantos perigos peculiares aos vapores que ainda estou indeciso se não voltaremos por um dos navios de linha de Nova York[6]. Na noite da tempestade, eu me perguntava onde estaríamos se a chaminé fosse derrubada. Nesse caso, não é necessária muita observação para descobrir que o navio seria tomado instantaneamente pelas chamas de proa a popa. Quando fui ao convés no dia seguinte, vi que estava sustentada por uma verdadeira floresta de correntes e cordas, que haviam sido armadas durante a noite. Hewitt me disse (quando estávamos em terra, não antes) que havia homens amarrados, içados e balançando lá durante toda a ventania, colocando essas escoras. Isso não é agradável, é?
Estou me perguntando se você se lembrará que a próxima terça-feira é o meu aniversário! Esta carta sairá daqui naquela manhã.
Quando olho para estas folhas, fico surpreso ao descobrir quão pouco eu lhe contei e quanto ainda tenho, mesmo agora, guardado que será seu por meio da conversa. Os pobres americanos, as fábricas americanas, as instituições de todos os tipos — eu já tenho um livro. Não há homem nesta cidade, ou neste estado da Nova Inglaterra, que não tenha um fogo ardente e um jantar de carne todos os dias de sua vida. Uma espada flamejante no ar não atrairia tanta atenção quanto um mendigo nas ruas.
Não há uniformes de caridade, nenhuma repetição cansativa do mesmo traje feio e monótono, naquela escola para cegos.[46] Todos se vestem de acordo com seus próprios gostos e cada menino e menina tem sua individualidade tão distinta e intacta como você encontraria nas casas deles. Nos teatros, todas as senhoras se sentam na frente dos camarotes. A galeria é tão silenciosa quanto a plateia superior no querido teatro Drury Lane. Um homem com sete cabeças não seria nada comparado a um que não sabe ler nem escrever.
Não vou falar (eu digo ‘falar’! Gostaria de poder) sobre as queridas e preciosas crianças, porque sei o quanto ouviremos sobre elas quando recebermos aquelas cartas de casa pelas quais ansiamos tão ardentemente.
*
Certamente, vemos de forma clara, nesta primeira de suas cartas, a impressão bastante leve e pura que ele recebeu durante esta visita memorável. E é devido, tanto a ele quanto ao grande país que o acolheu, que isso seja considerado independentemente de qualquer modificação que depois tenha sofrido.[7] Da intensidade e universalidade da recepção, de fato, não poderia haver dúvida, e tampouco que ela surgiu de sentimentos honoráveis tanto para o doador quanto para o receptor. As fontes da popularidade de Dickens na Inglaterra foram, na verdade, multiplicadas muitas vezes na América. O lado cordial, caloroso e humano de seu gênio os fascinou tanto quanto, mas havia também algo além disso. O temperamento alegre que deu nova beleza às formas mais comuns da vida, o humor abundante que acrescentou muito a toda diversão inocente, a distinção honrosa e naquela época rara da América, que não deixava nenhum lar na União[8] inacessível a tais vantagens, fez de Dickens o objeto em todos os lugares de uma admiração grata, na maior parte de afeição pessoal. Mas mesmo isso não era tudo.
Não digo isso para diminuir ou aumentar o valor do tributo, mas para expressar simplesmente o que era, e não há dúvida de que o jovem autor inglês, que por sua linguagem eles reivindicaram igualmente como seu, era quase universalmente considerado pelos americanos como uma espécie de protesto incorporado contra o que acreditavam ser o pior das instituições da Inglaterra, opressivas e sombrias em um sentido social, e adversas a influências puramente intelectuais. Em todos os jornais de todos os tipos na União, dos quais muitos foram enviados a mim na época, o sentimento de triunfo sobre a pátria mãe nesse elemento particular é predominante em todos os lugares. Vocês adoram títulos, disseram eles, e heróis militares, e milionários, e nós do Novo Mundo queremos mostrar a vocês, estendendo o tipo de homenagem que o Velho Mundo reserva para reis e conquistadores, a um homem jovem que não tem nada para o distinguir além de seu coração e seu gênio, o que consideramos, por aqui, mais digno de honra do que nascimento, ou riqueza, um título ou uma espada.
Bem, havia algo para além de mera exaltação sobre a pátria mãe. Os americanos tinham, sinceramente, mais do que uma participação comum nos triunfos de um gênio que, em mais de um sentido, fez os desertos e selvas da vida florescerem como a rosa. Eles estavam autorizados a escolher para uma recepção, tão enfática quanto desejassem torná-la, o escritor que, em sua geração, havia se dedicado a “detectar e salvar”, em criaturas humanas, tais faíscas de virtude que a miséria ou o vício não haviam conseguido extinguir; a descobrir o que é belo e agradável sob o que comumente passa por grotesco e deformado; a extrair felicidade e esperança do desespero; e, acima de tudo, a fazer conhecer a seus compatriotas as necessidades e sofrimentos dos pobres, dos ignorantes e dos negligenciados, de forma que eles não pudessem ser deixados mais em absoluta negligência.
“Um triunfo foi preparado para ele,” escreveu o sr. Ticknor a nosso querido amigo Kenyon, “no qual todo o país se unirá. Ele terá um progresso pelos Estados que não será igualado desde o de Lafayette.” Daniel Webster disse aos americanos que Dickens já havia feito mais para melhorar a condição dos pobres ingleses do que todos os estadistas que a Grã-Bretanha enviou ao Parlamento. Suas simpatias são tais, exclamou o Dr. Channing, que o recomendam de maneira especial a nós. Ele busca aquela classe, a fim de beneficiá-la, com a qual as instituições e leis americanas mais fortemente simpatizam e é nas paixões, sofrimentos e virtudes das massas que ele encontrou seus temas de interesse mais emocionante. “Ele mostra que a vida em sua forma mais rude pode ter uma grandeza trágica; que, em meio a tolices e excessos, provocando riso ou escárnio, os sentimentos morais não morrem completamente, e que os recantos do crime mais sombrio às vezes são iluminados pela presença e influência das almas mais nobres. Seus retratos têm a tendência de despertar simpatia por nossa raça e de transformar a indiferença insensível que prevaleceu em relação à multidão oprimida em uma sensibilidade triste e indignada por suas injustiças e aflições.”
Qualquer que seja a direção que veremos a recepção tomar, pela insatisfação que surgiu de ambos os lados, é bom que entendamos assim o que em suas primeiras manifestações foi honroso para ambos. Dickens teve suas decepções e os americanos tiveram as suas, mas o que realmente foi genuíno no primeiro entusiasmo, permaneceu sem grave alteração em ambos os lados. As cartas, que a seguir apresentarei, naturalmente explicarão e ilustrarão o mal-entendido, exigindo pouco comentário adicional. Estou feliz por poder registrar aqui fac-símiles dos convites para os entretenimentos públicos em Nova York que chegaram até ele antes de deixar Boston. As meras assinaturas são suficientes para mostrar quão universais foram as boas-vindas àquela grande cidade da União.






O primeiro volume de A vida de Charles Dickens será publicado pela Senhora Bennet Editora no dia 07 de fevereiro de 2025. Abriremos a pré-venda no início de janeiro.
Notas da tradutora
[1] Pilot, em inglês. Profissional que orienta a navegação de navios em portos, rios ou canais, sendo responsável por guiar embarcações com segurança em águas complicadas ou restritas.
[2] A Eastern Passage é uma estreita passagem marítima localizada na Nova Escócia, Canadá, que conecta o porto de Halifax ao Oceano Atlântico. Essa área é conhecida por suas águas desafiadoras e por ser uma rota alternativa ao porto principal de Halifax, especialmente útil em condições climáticas adversas. Na história náutica, a Eastern Passage já foi palco de incidentes marítimos. Hoje, a região do entorno é um destino turístico e uma área residencial.
[3] Tremont House foi um famoso hotel localizado em Boston, inaugurado em 1829, conhecido como o primeiro hotel moderno nos Estados Unidos. Ele introduziu muitas inovações para a época, como quartos privativos em vez de dormitórios compartilhados, banheiros com encanamento indoor (uma raridade na época), serviço de recepção, travesseiros e sabão fornecidos aos hóspedes. O Tremont House marcou um ponto de virada na história da hotelaria ao estabelecer padrões que hoje consideramos comuns. Ele também influenciou o design e a operação de hotéis em todo o mundo.
[4] Gaiters são peças de vestuário que cobrem a parte inferior das pernas, geralmente usadas sobre calças e sapatos. Elas são projetadas para proteger contra sujeira, água, neve ou outras condições climáticas adversas. Tradicionalmente, os gaiters eram usados por caçadores, caminhantes e militares, mas também podem ser um acessório de moda. Em alguns contextos, podem ser feitas de materiais como lona ou couro e amarradas ou fechadas com zíperes.
[5] Table-d'hôte é um termo francês que se refere a um tipo de refeição em que um menu fixo é oferecido aos clientes por um preço único. Normalmente, é servido em restaurantes ou hotéis e inclui uma seleção de pratos pré-determinados, com opções limitadas.
[6] Os navios de linha, também conhecidos como transatlânticos ou navios de cruzeiro, desempenharam um papel fundamental na história da navegação e do transporte de passageiros. Originalmente, esses navios eram utilizados para serviços regulares de transporte entre continentes, conectando cidades e países ao longo das rotas marítimas mais movimentadas. A popularidade dos navios de linha aumentou no século XIX, quando as inovações tecnológicas, como o uso de motores a vapor, permitiram viagens mais rápidas e confortáveis. Esses navios eram projetados para oferecer não apenas transporte, mas também conforto e entretenimento aos passageiros. Muitas vezes, eram equipados com luxuosos salões, restaurantes, cabines confortáveis e uma variedade de atividades recreativas. Durante a Era de Ouro dos Navios de Linha, nos anos 1920 e 1930, empresas como Cunard e White Star Line se destacaram, oferecendo viagens transatlânticas que se tornaram sinônimo de elegância e classe.
[7] Essas modificações referem-se, em grande parte, ao crescente desencanto de Dickens com a sociedade americana, que se manifestou em suas cartas e obras subsequentes. Embora Dickens tenha sido calorosamente recebido e admirado na América, sua percepção da realidade social e das instituições do país começou a mudar, revelando preocupações com questões como a pobreza, a desigualdade social e a superficialidade da vida americana. Essa evolução em sua visão destaca um contraste entre a recepção entusiástica que experimentou inicialmente e suas críticas mais tarde, refletindo uma complexa relação de amor e desapontamento com os Estados Unidos.
[8] O termo "União" refere-se aos Estados Unidos da América, particularmente ao período após a Guerra Civil Americana (1861-1865). A palavra "União" era frequentemente usada para designar o governo federal e as áreas que permaneceram leais a ele durante a guerra, em contraste com os Estados Confederados do Sul. O uso do termo implica uma ênfase na coesão e na identidade nacional americana, destacando a ideia de um país unido em busca de progresso e desenvolvimento