Apresentando a Senhora Bennet
Por que, de todos os personagens da literatura inglesa, Mrs. Bennet?
É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro em posse de uma boa fortuna deve estar procurando uma esposa.
Por mais que se saiba pouco a respeito dos sentimentos ou opiniões de tal homem quando ele chega pela primeira vez a uma vizinhança, essa verdade está tão bem fixada nas mentes das famílias vizinhas que ele é considerado como propriedade legítima de uma ou outra de suas filhas.
"Meu caro sr. Bennet", disse-lhe sua senhora um dia, "você soube que Netherfield Park finalmente foi alugada?"
Orgulho e Preconceito (1813), Jane Austen
Orgulho e Preconceito (1813), o romance mais popular de Jane Austen, traz uma das frases de abertura mais famosas e discutidas da literatura mundial, uma sentença que encapsula para o leitor a tão comentada ironia austeniana. Também é verdade que a ironia é construída no primeiro capítulo a partir das reações antitéticas do sr. Bennet e de sua esposa em relação à chegada de Charles Bingley à vizinhança. Ele não vê razão para entusiasmo ou alarde; ela vê a possibilidade de casar uma das cinco filhas solteiras.
É no primeiro capítulo que a sra. Bennet reclama a respeito da falta de cuidado do marido com seus nervos, uma aflição à qual ela retornará diversas vezes ao longo do romance. A sra. Bennet é personagem identificada eternamente pelo papel que desempenha na família. Jane Austen jamais nos informou o nome dela ou o de seu marido, mas o sobrenome era uma marca de descendência patrilinear. Embora o sr. Bennet tenha sido sempre o sr. Bennet, sua esposa foi Miss Gardiner um dia. Assim, ela chega a nós pelos nomes de seu pai e de seu marido, uma mulher eternamente identificada por meio de sua preocupação com a precariedade da situação de sua família.
A sra. Bennet frequentemente foi encarada por leitores e adaptadores da obra de Jane Austen como uma figura um pouco ridícula, especialmente quando comparada ao espírito sereno e despreocupado do marido. Enquanto a esposa defende os méritos de Jane e Lydia, o sr. Bennet tem Lizzie como favorita, o que também leva o leitor a encontrar nele mais oportunidades para identificação. Enquanto a sra. Bennet arquiteta o pedido de casamento do desagradável sr. Collins, o sr. Bennet dá liberdade para que a filha tenha sua escolha respeitada. Os excessos da sra. Bennet e a indelicadeza com a qual reitera suas ansiedades relativas ao próprio destino e o das filhas na possibilidade da ocasião da morte do sr. Bennet a tornam, por vezes, pouco simpática. Enquanto ele se isola na biblioteca, no entanto, sua senhora é consumida por um medo de destituição que ele jamais enfrentará em primeira mão. O casal foi improvidente. Tendo apostado tudo em uma ocorrência futura e incerta - o nascimento de um filho do sexo masculino - os Bennet não encontram um plano de contingência plenamente satisfatório quando se encontram, após 23 anos de casamento, com cinco filhas mulheres.
O gravame Longbourn é provavelmente o mais famoso da história da literatura e é a vinculação da propriedade a herdeiros do sexo masculino que garante que a família Bennet não permanecerá em posse de seu lar por mais uma geração. A figura das protagonistas destituídas por familiares frios e mesquinhos já havia sido trabalhada por Austen em seu romance de estreia, Razão e sensibilidade. Após a morte súbita de um pai que não economizou o suficiente a tempo, Elinor, Marianne, Margaret e a sra. Dashwood devem deixar Norland. Antes mesmo que o façam, Fanny Dashwood, esposa do meio irmão das protagonistas, já faz sua presença sentida na casa, realizando um inventário improvisado de tudo que deveria ser dela: da prataria aos tecidos. Embora por dispositivos legais diferentes, pode se dizer que no enredo do romance de estreia de Austen as garotas Dashwood vivenciam o pesadelo da sra. Bennet. Sem filhos, o gravame não pode ser quebrado e é com uma renda limitada que os Bennet devem sobreviver. Embora usada como alívio cômico, a ansiedade da sra. Bennet é perfeitamente justificada pela própria estrutura do romance. Sua crítica ao gravame, emoldurada pela exasperação de Jane e Elizabeth com a sua falta de compreensão em relação ao funcionamento do dispositivo legal, é reiterada no romance apenas por outra mulher pouco simpática: Lady Catherine.
Isso não significa que Jane Austen produza um elogio ao gravame, no entanto. A autora, pelo contrário, parece nutrir certa ternura por suas personagens menos aprazíveis, das figuras absurdas da juvenília, passando por Lady Susan e chegando em Emma Woodhouse. Se elas são as únicas a dar voz a uma crítica desta natureza, a censura que poderia ser mais polêmica na voz de uma protagonista ainda assim é enunciada.
Neste sentido, podemos ressituar as ansiedades da sra. Bennet não como caprichos de uma mulher inconveniente, mas como um sintoma da principal força estruturante do romance: a desigualdade nas prerrogativas e papeis atribuídos a cada gênero e as oportunidades limitadas que uma mulher da classe da sra. Bennet teria para assegurar o seu futuro. A precariedade do funcionamento do mercado de casamentos é anunciada tanto pela perspectiva de aceitar um casamento infeliz como dever (no pedido de casamento feito a Elizabeth pelo sr. Collins) quanto pela efetivação de um casamento como fuga literal de uma posição social desconfortável (na aceitação de Collins por Charlotte). Embora casamentos mercenários sejam motivo de desdém para a protagonista austeniana, o casamento por amor também precisa ser qualificado pelo bom senso. O sr. Bennet se apaixonou pela futura esposa com base em um encantamento pela beleza e pela juventude da moça. O sentimento evaporou rapidamente quando a incompatibilidade entre suas personalidades se revelou. Assim, Darcy precisará passar por uma curva de aprendizagem no mesmo sentido em que Elizabeth será forçada a rever sua leitura de Fitzwilliam. Antes que eles possam, de fato, se casar, eles precisam se (re)conhecer.
Nem todos terão a sorte de encontrar parceiros dispostos a realizar reavaliações éticas e afetivas, no entanto, e embora Austen proporcione à sua protagonista um final feliz pleno, isto é, um casamento baseado na compatibilidade adquirida por meio do diálogo, outras uniões menos satisfatórias neste e em outros romances denunciam a raridade de uma ocorrência assim. Neste sentido, retornamos à sra. Bennet, ansiosa tanto pela incerteza que o futuro reserva à sua família quanto pelo fato de não estar especialmente qualificada para agir. Ela passa boa parte do primeiro capítulo tentando convencer o marido a realizar uma primeira visita a Netherfield para estabelecer um vínculo de convivialidade com Bingley. Embora o sr. Bennet tenha em mente a necessidade de cumprir esta convenção, ele impõe obstáculos ao pedido da esposa apenas para exasperá-la, antes de ceder.
Uma leitura atenta deste e outros elementos demonstram que o excesso de energia da sra. Bennet é provocado, em parte, pelo fato de seu marido frequentemente se abster de exercer o seu papel. Se mais adiante Elizabeth se decepcionará com a desídia do pai após o incidente de Brighton, a lassidão com a qual Bennet desempenha sua função de chefe de família é anunciada já no primeiro capítulo, mas também na maneira como, trancado em sua biblioteca, recusa um papel que nem sua esposa, nem suas filhas poderiam exercer. Se a família se encontra em uma posição precária isto se deve em parte ao compromisso de seu patriarca com possibilidades incertas e à falta de cultivo de garantias de um futuro confortável: no passado o sr. Bennet se recusou a poupar dinheiro, apostando na certeza de que teria um filho.
Por que, então, Senhora Bennet?
Feliz para todos os seus sentimentos maternais foi o dia em que a sra. Bennet se livrou de suas duas filhas mais merecedoras.
Orgulho e Preconceito, capítulo 61
Se considerarmos o interesse de Jane Austen em estudar a posição e as limitações impostas à mulher pelas dinâmicas sociais de seu tempo, a figura da mulher madura, casada ou não, embora em geral colocada na posição de coadjuvante, desempenha uma função crucial nos enredos de quase todos os seus romances. A senhora Bennet abre o primeiro e o último capítulo de Orgulho e Preconceito. Emoldurando o romance estão os “sentimentos maternais” a que a narradora faz referência após os casamentos de Jane e Elizabeth. É assim, portanto, que esta mulher sem primeiro nome (seria este Jane, como sua primeira filha e como sua criadora?) dá a Orgulho e Preconceito seu tom e seu tema.
Como entusiastas da obra de Jane Austen e do romance oitocentista inglês em um sentido mais amplo, consideramos interessante que um espaço dedicado a estudar a literatura compartilhe seu nome com esta personagem tão definida pela sua classe e posição social. Assim nasceu a Senhora Bennet.
Na primeira leitura, a sra. Bennet inspira riso e exasperação. Na segunda ela se revela uma figura multifacetada, que carrega no riso, essa ferramenta austeniana essencial, medidas não desprezíveis de melancolia. Se abordarmos a literatura como um corpo vivo de textos em eterna ressignificação, seja pela mudança dos tempos, seja pela experiência de vida de quem lê, a senhora Bennet me parece um belo ponto de partida! A partir deste mês, meus cursos livres serão sempre lançados via Senhora Bennet.
No dia 19 de setembro a Senhora Bennet abrirá inscrições para uma nova versão do curso Introdução ao Romance Vitoriano. Ainda esta semana também anunciaremos um curso novo. Não deixe de se inscrever na newsletter para receber todas as notícias sobre o que vem por aí!